Foi assim que
aconteceu comigo: Fomos, e ainda somos uma família numerosa de dez irmãos,
meninos e meninas saudáveis, atletas e artistas!
Em tempos
distantes, dividíamos uma chácara de mais ou menos uns 300 alqueires de área,
de fácil localização! Sua topografia era ótima, semi plana e totalmente
acercada por nascentes e pequenas cataratas; cuja extensão de campo se fazia
necessária para pastagens e plantações!
Naquela época,
levávamos uma vida de rei, uma infância arteira, turbulenta e gostosa, não
tendo tempo ruim para se fazer seleções! As árvores nos serviam de abrigos, e
os campos abertos faziam de conta que eram nossos centros esportivos, parques e
praças.
Ali, naqueles
campos maneiros, ficávamos propícios a entretenimentos, quedas de braços,
partidas de futebol e andanças de bicicletas, servindo também para ocasiões que
dispensassem grandes formalidades, como namoros ou conversinhas moles!
Minha mãe
cuidava do almoço, enquanto nós arávamos a terra para novas plantações de
milho, arroz e feijão. Meu pai, aquele velho tinhoso, exigente, rabugento e chato,
não parava de nos repreender, impondo-nos autoridade em cima de varas,
xingamentos e correções!
Era ele um
senhor muito magro, desajeitado, de falhos de barba, roupas maltratadas e de
chapéu engraçado. Ficava pitando seu cigarro mal cheiroso, enquanto roçava a
inchada pelo chão em busca de leguminosos para o nosso próximo desjejum!
Às manhãs,
enchíamos as latas de leite, ordenhadas pelas tetas das vacas, no intuito de
destiná-las a usina mais próxima, na fabricação de doces, queijos, manteigas,
etc.. A partir dali, começava nosso cansativo martírio, dentre tantas lutas,
sofrimentos e trabalhos suados, visando atingir alvos para a família “Conrado”!
Quanto às nossas
instruções e entretenimentos, apesar de morarmos na roça, sempre estudamos nas
melhores escolas das adjacências, e frequentamos as mesmas festas e badalações!
Éramos os
"irmãos prodígios", assim referido pela vizinhança enxerida, devidas
cumplicidades e idades equivalentes a pouco menos que dois degraus. Quanto aos
nossos nomes, começavam com uma mesma inicial, finalizando sempre com apelidos
esquisitos, como Rui, Dete, Sôn e assim por diante.
O tempo foi-nos
passando tão depressa, como um sobrevoar de uma gavinha apressada! Crescemos o
dobro do esperado, tendo-nos que nos transformar, de muitos a únicos!
Assim, nos
individualizamos, personalizando uma aparência robusta, séria e incivilizada;
dissociando, assim, nossa tão abençoada cumplicidade familiar!
Muitos de nós,
ambicionados pelas modas tecnológicas das cidades grandes, havíamos conquistado
independências, sendo preciso buscar um futuro brilhante em outras capitais!
Meus dois irmãos
maiores, por exemplo, estando no terceiro semestre de um ano sugestivo a
grandes plantações, imigraram para regiões vizinhas, no intuito de se
estabelecerem remuneradamente!
Digo
também, que alguns, levados por gênios travessos e por caminhos tortuosos, envolveram-se
em vícios, gandaias, jogatinas e drogas, arrependendo-se não muito tempo à data
de hoje!
Todavia,
olhando-os tomarem caminhos diversos, sabia que aquilo que era bom entre nós
estava prestes a desaparecer, devido às novas práticas e os novos costumes
indo-se de contra mão ao ambiente gostoso de chácara ao qual desfrutávamos!
Do mesmo modo
que eles, eu também sonhava por um tempo melhor do que aquele que vivia na
roça! Além de que, eu era um pião desajeitado e cru, um simples caipira,
rústico e desbocado, mas de boa instrução!
Porém, mesmo sendo um capiau de roça, não
conseguia afastar-me daquela terrinha verde, abençoada e acolhedora, e nem
daquela gente suada, atracada as suas rotinas chulas, rústicas e costumeiras!
Além de que,
gostava de cuidar dos bichos, adubar as plantações, arar a terra e guarnecer os
chiqueiros! Eram coisas que meu pai havia me ensinado, me instruído e me
qualificado! Não sei dizer o porquê dessa minha escolha! Apenas amava o que
fazia, e pronto!
Minha vida no
campo era boa, quando comparada aos assomos da tecnologia das cidades
avançadas! Eu não gostava do que ouvia nas rádios, televisões e jornais, quando
me envenenavam seus noticiários sobre crimes, assaltos, contrabandos,
extorsões, desastres, sequestros e mortes!
No entanto, uma
coisa é certa, não estando em mim o direito de esconder, mentir ou omitir a
verdade! Posso estar seguro de que essas práticas ruidosas também vinham sendo
vistas em cidades de campo como a minha; pois, de fato, ainda hoje, a
criminalidade vem contribuindo para a nossa desestruturação, atingindo todo o
Brasil com suas facções contrárias às leis morais e aos bons costumes; chegando
a ocupar parte dos terrenos cobertos por matos!
Reafirmo que
temos vivenciado a violência aqui conosco, noite e dia, mas, porém, em grau inferior
às grandes capitais! A meu ver, isto mostra que as propriedades rurais têm
servido, muitas vezes, de pontos de esconderijos para desertores!
Mas, apesar dos
pesares, aquela vidinha campesina e grotesca de campo era tudo pra mim, ainda
que a tecnologia estivesse se estendendo cada vez mais entre os terrenos rurais!
Eu tinha internet, mas não tinha amigos a quem compartilhar ou curtir! Eu tinha
telefone portátil, mas faltava-me assunto para enviar torpedos ou mensagens!
No entanto, uma coisa era certa e não pode ser
esquecida: Era o trato rude do meu pai para comigo! Mesmo entrando em idade
maior, abusando de eletrônicos modernos e comendo a melhor comida de campo, eu continuava
sendo repreendido e admoestado severamente por aquele velho ranzinza, de mãos
calosas, unhas compridas, cabelos crespos e veias grossas!
Não entendia a
maldade de seu destratamento! Afinal, eu era o único que restara em sua
companhia, dentre uma turminha boa de dez irmãos! Fazia tudo que me pedia, como
seu vassalo, como um cumpridor de seus exercícios, um subordinado sujeitado a
um capataz mal criado! Sentia-me como uma rocha do mar, sendo açoitada pelas
ondas tempestuantes das águas!
Apesar de amar
tudo que fazia, não tinha a menor pretensão de continuar sujeitando-me de
escravo! O que meus irmãos haviam-me deixado de legado, era um pai frio,
distante e autoritário; um dominador que me inquiria até as tripas do meu
intestino! Assim, tinha que continuar na lida, trabalhando de sol a sol ou de
chuva a chuva, sentindo-me desprezado, rejeitado e lançado aos abutres!
Para mim, os
piores dias que já passei foram quando, em poucas vezes, meus irmãos vinham nos
visitar! Eu ficava de butuca, silencioso atrás da porta, espiando aquele velho
turrão sedentário, de sessenta anos, tomando-os em cerimônias e em muitos
banquetes!
Era um tal de
ficarem se abraçando, trocando presentes e se bajulando, como se eu não
existisse na família, tendo-me como um João Ninguém desajeitado e sem prumo na
vida!
As reuniões eram
sempre ao ar livre, encerradas com as melhores carnes de curral e bebedeiras
geladas, como cervejas, vinhos e cachaças! Ficavam curtindo os sons da viola de
um errante cantarolador, ou mesmo, ouvindo os grandes mestres nacionais no
aparelho de som!
Quanto a mim,
que sempre estive do lado daquele velho ranzinza e ingrato, nunca fui recebido
com honras ou aplausos, só arrogâncias e mandatos; e nem ao menos as migalhas
dos banquetes me sobravam, tendo que me refugiar aos porcos, cavalos, gatos e
cachorros!
Enquanto meus
irmãos cheiravam perfume francês, eu fedia estrume de boi, lavagem de porco ou
merda de vaca! Lembro-me de vê-los desfilando suas roupas caras e importadas,
enquanto me contentava com meus simples trapos e minhas botas desengonçadas!
Muitos anos
fiquei me excomungando entre campos, pastos e chiqueiros, executando serviços
braçais, quando também, ia acumulando muitas raivas! Chorava sozinho,
totalmente amargurado e constrangido pela indiferença e insensibilidade do meu
pai para comigo! Achava que não me amava o tanto como amava os seus filhinhos
queridos, ingratos e mal agradecidos! Filhos que o deixaram desamparado, o
rejeitaram e se envergonhavam de seu mal cheiro e de seus maus trapos!
No entanto, como
tudo que é vivo um dia acaba se definhando, meu pai entrava nessa fase de mudanças
físicas e psicológicas! Suas forças esgotaram-se, tornando o corpo mais frágil
e delicado! Seus cabelos esbranquiçaram, perdendo os reflexos auditivos e as
capacidades visuais! Para andar, precisava ser amparado por bastões, homens ou
andadeiros! Por consequência, dependia de mim para locomovê-lo a um simples
banheiro, estando completamente sujeitado aos meus cuidados!
Eu o olhava ao
ponto de vomitá-lo as minhas indignações e os meus conflitos internos! No
entanto, ele apenas sorria-me de modo único, angelical e gostoso, tratando-me à
vontade e com melhores sutilezas!
Num certo dia
que não estava esperando, senti que me olhava de um modo diferente aos outros
dias, como se quisesse e precisasse me dizer algo! No entanto, lembro-me de
vê-lo suspirar algumas vezes, mantendo a garganta estrangulada e os olhos
úmidos. Logo, falando baixinho, engasgado e muito cadenciado, recostou-se ao
meu peito ofegantemente e se alegrou!
Eu tinha pena
dele, ao mesmo tempo em que não me sobrava qualquer tipo de afeiçoamento,
carinho ou remorso! Estava ferido, dilacerado e compromissado com meus traumas
e minha vulnerabilidade caprichosa!
Queria chorar,
como todas as vezes que chorei sozinho! Mas as lágrimas vinham secadas dos
olhos, motivadas pelo brio desgostoso e pelo meu maldito orgulho ferido!
Assim, antes que
alguma coisa inútil e imprestável saísse de minha garganta, ou que, porventura,
lhe faltasse com algum respeito, ele, simplesmente, topou mão em parte do meu braço,
dizendo-me seguidamente: "Filho
meu! Estou velho e acabado! Minhas forças esgotaram-se! A você, tenho confiado
o meu campo, minha chácara, minha usina de leite, meu gado, minha plantação e
minha vida! Em minha mocidade, o treinei para que fosse melhor que a mim nos dias
de minha velhice! Vejo que meu esforço e investimento não foram em vão! Estou
feliz porque vejo que és o meu melhor soldado, ao qual, o que nunca vi nos seus
irmãos, sempre enxerguei em ti! Assim, tudo o que é meu, se torna nosso!"
Emoção maior não
poderia sentir naquela hora! Emocionadíssimo, fiquei-me autoflagelando à custa
de remorsos e arrependimentos, devidas injúrias atiçadas contra ele no passado!
Deveria saber que aquele velho autoritário me amava incondicionalmente, ao
ponto de preparar-me para as boas colheitas dos dias vindouros!
Tinha que ter em
mente que, como pai, nunca desprezaria ou deixaria de amar seus outros filhos;
filhos ingratos, que se esqueceram de seus conselhos, que se comprometeram com
gastos excessivos, que se individualizaram em cidades grandes e que lhe
abandonaram!
Todavia, tendo
em memória a parábola do "filho pródigo", hoje entendo o seu tão
maravilhoso legado para comigo! Certamente, sempre amou esse seu filho
rejeitado acima de toda riqueza, todo dinheiro e toda magnificência; sabendo
que nunca me desampararia, assim como jamais viria sair do meu convívio!
Se não fosse por
ele, eu não estaria ali! Afinal, confiava em mim e me amava incondicionalmente,
ao ponto de entregar-me tudo que havia conquistado durante uma vida inteira!
Eu era seu
sucessor, àquele que levaria seu nome, que seguiria adiante os seus interesses,
os seus costumes, os seus ideais e os seus planos, como uma corrente ligada a fios
elétricos ou a elementos condutores!
Oh grande homem
que queria apenas o meu bem, e que, todo tempo me ensinava, me instruía e me
fortalecia, não me deixando afastar do ponto de partida e nem estragar os meus
valores!
Hoje, tenho
ciência que precisei passar pelo fogo, ser repreendido, instruído e admoestado,
para, somente depois, vim receber tão maravilhosa benção e recompensa!
Tive que ser trabalhado, moldado e lapidado, como joia rara, preciosa e de boa
qualidade; tendo agora que dar sequência àquilo que meu querido e velho pai
tinha principiado e adquirido por meio de esforços e trabalhos brutos!
Afinal, assim
como Deus Pai nos instrui, nos capacita, nos ensina e nos exorta, sendo-nos
considerados seus filhos amados, na sua vez, o homem também é capaz de instruir
e repreender àquele que verdadeiramente ama! Aliás, foi assim que aconteceu
comigo!
Texto ilustrado em primeira pessoa, cujos protagonistas são fictícios!
Gláucia Cardoso